domingo, 7 de setembro de 2014

Por que morrer?


Por que morrer?
Porque o sonho se tornou pesadelo.
Porque a razão humana é mais hipocrisia e menos verdade.
E a liberdade é apenas, para os ingênuos, uma inalcançável utopia.

Morrer é um ato humano de liberdade suprema.
É ganhar de Deus a última partida.
É passar, democraticamente, uma rasteira na dor por amor à vida.

É ir atrás de um novo céu onde, talvez, a glória nos sorria,
porque este que nos abriga tem uma eterna cara de cão raivoso
que nos humilha, latido a latido, segundo a segundo,
cada vez com maior fúria, deixando-nos um pouco mais escarnecidos.

Morrer é arriscar com uma só carta toda nossa vida.
É apostar tudo no desejo de encontrar um luzeiro que nos ilumine um novo caminho.

E se perdemos a aposta, só perderemos a desesperança e a dor infinita.
Só perderemos o pranto que, lágrima após lágrima, nos inunda a alma.

Como o náufrago que, depois de afundado o barco,
só espera, com a resignação do vencido, esgotar a força da última braçada
para entregar-se, como o amante submisso, às ternas carícias de seu mar amado;
a seu beijo salgado e arrulhos de brisas.

E se ganhamos a aposta da morte, se a sorte esquiva uma única vez nos olha,
ganharemos o céu, porque no inferno já passamos toda nossa vida.

Por que morrer?
Porque toda viagem tem sua hora de partida. E todo aquele que parte de viagem
tem o privilégio, e o direito, de escolher o melhor dia de saída.

Por que morrer?
Porque às vezes a viagem sem retorno é o melhor caminho
que a razão pode nos ensinar, por amor e respeito à vida.
Para que a vida tenha uma morte digna.

- Ramón Sampedro em "Cartas do Inferno",
livro que deu origem ao filme "Mar Adentro"






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