Ensinamento secreto
Há descobertas que só serão feitas depois de se perder alguém.
Para o sofrimento da ausência física, somos analfabetos
enquanto não o enfrentamos
Há descobertas que só serão feitas depois de perder alguém.
Há um entendimento que só é alcançado depois da morte de uma pessoa amada.
Não há como pular etapas.
Não há como espiar o território sagrado por cima do muro.
Não há como antecipar o discernimento, a clareza, o peso das palavras.
Não há como fazer a prova previamente, pois o conteúdo é inacessível.
Por mais sensível e inteligente que seja, existe algo secreto
que unicamente o fim ensina.
É uma carta que permanecerá fechada dentro de si até ter que se despedir
verdadeiramente de um pai ou de uma mãe ou de um irmão ou de um filho.
Até acompanhar o ente querido descer ao chão e ser coberto de terra.
Até o caixão não permitir nenhum retorno, com os seus parafusos apertados.
Terá que ler sozinho encerrada a partida.
Se tentar decifrar fora do tempo, a folha estará em branco.
Para o sofrimento da ausência física, somos analfabetos enquanto não o enfrentamos.
Juramos que estamos preparados, mas não existe defesa.
A teoria não alivia a prática. Nenhum abraço é capaz de repetir a descarga elétrica
em nossos pensamentos quando abraçamos o vazio.
Entenderá o que digo quem passou por tal provação. Mais ninguém.
A saudade que já experimentou um dia, durante a presença,
durante o contato frequente, durante a possibilidade de mudar de opinião
e de realizar uma pergunta, durante a chance de perdoar e de ser perdoado,
durante o convívio que permitia a correção das fraquezas,
não será nada perto da pedra definitiva do túmulo,
onde nada mais poderá ser mudado e dito.
Neste momento, a proteção da memória arrebenta, e enxergamos em minutos
o filme inteiro de uma biografia. Um turbilhão incompreensível
passa a ganhar sentido e encharca os olhos.
A sensação é que abandonamos o escuro emocional do apego
e a luz do sol agride a vista.
Você recordará de coisas absurdas, de detalhes insondáveis,
de cenas que não imaginava ter experimentado.
É uma hipnose regressiva na mais desesperadora consciência.
O olfato trará o cheiro das roupas do falecido, o ouvido trará a voz nítida dele
como se estivesse ao seu lado, o paladar trará o gosto da refeição predileta
que dividiam na mesa da cozinha.
Antes você pensava que amava, pensava que sabia o que acontecia,
pensava que era capaz de ter noção da importância do outro em sua vida.
Pensava, o que é muito diferente de sentir.
Crônica publicada no jornal Zero Hora/RS, GaúchaZH, p. 4, 10/12/19
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