domingo, 19 de julho de 2020


“[...] num ano já antigo, minha avó que era a dona da loja de velhos ficou muito velhinha também. Só que nenhuma das coisas da loja resolviam, porque o problema era dentro da cabeça dela.
Minha mãe disse na época que era porque a vovó era inteligente demais, daí tinha gastado a cabeça mais cedo do que devia, e eu fiquei com medo de ser inteligente.[...]
Um pouco antes de morrer, a vovó já sem andar [...], e ela me olhou, e falou bem baixinho e triste, o olho cheio de água: Antônio nunca me amou.
Eu senti um monte de coisa ao mesmo tempo. Primeiro que eu precisava dizer que sim, imagina, o vovô amou muito a senhora. Só que era a primeira vez que me diziam que era possível passar 60 anos ao lado de alguém sem amor. O vovô de fato parecia ter sido um homem que não amou ninguém.
Também percebi que obviamente é isso que vai acontecer comigo, eu vou morrer sozinha, sem cabelo, e mesmo muito confusa ainda vou ter espaço pra essa dor, essa coisa total que vai ser a minha solidão.
E também pensei que isso de não ser amada pelo marido era gravíssimo, porque minha avó estava ali com uma porção de problemas, dores no corpo, fraldas, engasgos, a morte, e a única coisa que a faz parar e pensar e chorar foi esse homem que já tinha morrido e talvez nunca de fato tivesse amado mesmo. 
Não consegui dizer nada, e acho que disso eu já tenho aquele arrependimento. Não senti que eu tinha idade pra dizer a uma mulher qualquer coisa sobre isso. E ela continuava me olhando, talvez esperando uma resposta, é só isso que ela precisava, como se eu fosse um anjinho flutuando do lado da cama, e bastava que eu dissesse com muita convicção que ela tinha vivido a mais bonita história de amor de todos os tempos, e talvez ela tivesse morrido feliz.
Mas eu não disse nada. [...].  
Ficou sendo meu segredo, minha grande falha. O dia em que a vovó só precisava de uma mentira, e eu não tive coragem”.


- Mariana Salomão Carrara em "Se Deus me chamar não vou" (p. 64-67).


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