quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A alma do outro - Lya Luft

"A alma do outro é uma floresta escura”, disse o poeta Rainer Maria Rilke, 
meu único autor de cabeceira.
A vida vai nos ensinando quanto isso é verdade. 
Pais e filhos, irmãos, amigos e amantes podem conviver décadas a fio, 
podem ter uma relação intensa, podem se divertir juntos e sofrer juntos, 
ter gostos parecidos ou complementares, ser interessantes uns para os outros, superar grandes conflitos – mas persiste o lado avesso, o atrás da máscara, 
que nunca se expõe nem se dissipa.

Nem todos os mal-entendidos, mágoas e brigas se dão porque somos maus, 
mas por problemas de comunicação. 
Porque até a morte nos conheceremos pouco, porque não sabemos como agir. 
Se nem sei direito quem sou, como conhecer melhor o outro, meu pai, meu filho, 
meu parceiro, meu amigo – e como agir direito?

[...] nos mal-entendidos reside muito sofrimento desnecessário.
Amor e amizade transitam entre esses dois “eus” que se relacionam 
em harmonia e conflito: afeto, generosidade, atenção, cuidados, 
desejo de partilhamento ou de vida em comum, vontade de fazer e ser um bem,
 e de obter do outro o que para a gente é um bem, o complicado respeito 
ao espaço do outro, formam um campo de batalha e uma ponte. 

Pontes podem ser precárias, estradas têm buracos, 
caminhos escondem armadilhas inconscientes que preparamos 
para nossos próprios passos em direção do outro. 
O que está mergulhado no inconsciente é nosso maior tesouro 
e o mais insidioso perigo.Pensar sobre a incomunicabilidade 
ou esse espaço dela em todos os relacionamentos significa pensar no silêncio: 
a palavra que devia ter sido pronunciada, mas ficou fechada na garganta 
e era hora de falar; o silêncio que não foi erguido no momento exato – 
e era o momento de calar.

Mas, como escrevi várias vezes, a gente não sabia. 
É a incomunicabilidade, não por maldade ou jogo de poder, 
mas por alienação ou simples impossibilidade. Anos depois poderá vir a cobrança: 
por que naquela hora você não disse isso? 
Ou: por que naquele momento você disse aquilo?

Relacionar-se é uma aventura, fonte de alegria e risco de desgosto. 
Na relação defrontam-se personalidades, dialogam neuroses, esgrimem sonhos
 e reina o desejo de manipular disfarçado de delicadeza, necessidade ou até carinho.
 Difícil? Difícil sem dúvida, mas sem essa viagem emocional 
a existência é um deserto sem miragens.

No relacionamento amoroso, familiar ou amigo acredito que partilhar a vida 
com alguém que valha a pena é enriquecê-la; permanecer numa relação desgastada 
é suicídio emocional, é desperdício de vida. 
Entre fixar e romper, o conflito e o medo do erro.

Somos todos pobres humanos, somos todos frágeis e aflitos, 
todos precisamos amar e ser amados, mas às vezes laços inconscientes 
enredam nossos passos e fecham nosso coração. A balança tem de ser acionada: 
prevalecem conflitos ásperos e a hostilidade, ou a ternura e aqueles conflitos 
que ajudam a crescer e amar melhor, a se conhecer melhor e melhor enxergar 
o outro? O olhar precisa ser atento: mais coisas negativas ou mais gestos positivos?
 Mais alegria ou mais sofrimento? Mais esperança ou mais resignação?
Cabe a cada um de nós decidir, e isso exige auto-exame, avaliação. 

Posso dizer que sempre vale a pena, sobretudo vale a pena apostar 
quando ainda existe afeto e interesse, quando o outro continua sendo um desafio
 em lugar de um tédio, e quando, entre pais e filhos, irmãos, amigos ou amantes, 
continua a disposição de descobrir mais e melhor quem é esse outro, 
o que deseja, de que precisa, o que pode – o que lhe é possível fazer.

Em certas fases, é preciso matar a cada dia um leão; em outras, estamos num oásis. 
Não há receitas a não ser abertura, sinceridade, humildade que não é rebaixamento.
 Além do amor, naturalmente, mas esse às vezes é um luxo, 
como a alegria, que poucos se permitem.

Seja como for, com alguma sorte e boa vontade a alma do outro 
pode também ser a doce fonte da vida. 

- Lya Luft


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