sexta-feira, 2 de novembro de 2018

"Perder quem amamos é morrer um pouco, mesmo que o coração insista em bater.
O luto nos torna um lugar ruim. Queremos fugir de nós mesmos, 
emprestar outra vida, perder a memória, trocar de papel.
Qualquer coisa que nos tire a dor com a mão, que nos salve
do horror de sentir que alguém foi amputado de nós. Não há alívio imediato.

A morte é uma verdade disfarçada de absurdo. Não se arrepende,
não volta atrás, é desfecho. O verdadeiro 'para sempre'.

Enlutar-se é se mudar para uma espécie de cela blindada, da qual saímos somente
para intermináveis e dolorosos banhos de sol. [...]

Eu me lembro de vagar pela cidade como numa cena sem áudio.
Olhava ao redor e me perguntava com que direito as pessoas sorriam,
se dentro de mim as luzes estavam apagadas. É assim até que a gente
se acostume. A morte se repete muitas vezes. Ao acordar, está lá a morte de novo.
A cada lembrança, outra morte. Até que em nós ela morra de fato - e isso demora.

[...] Veja você como a vida é chegada numa ironia: o luto é praticamente um parto.
É preciso reaprender a viver sem a pessoa que se foi, como quem nasce de novo
- e quem permanecerá o mesmo?  Viver o luto é renascer -
e nascer é exercício solitário. É preciso olhar o mundo novamente
e re-conhecer-se diante dele.

Mas, como criança que cresce, o luto demanda tempo. Enquanto isso,
não sai por aí despertando sorrisos. [...]
a perda vai se alojando no corpo, como uma bala encapsulada, 
até não incomodar mais. Com paciência, o tempo muda os afetos de lugar.
Passa a morar em mim quem se foi.

[...] As pessoas que se vão nos fazem pensar sobre nossas vidas.
Lembram-nos a urgência de amar quem está vivo e perto. E ensinam
que fazer escolhas não precisa ser tão sofrido, nem carece do peso da certeza
de sr para sempre. Nenhum de nós é para sempre.

A vida é curta, sim. Não vem com prazo de validade nem garantia.
Cada dia é oportunidade única para afetos reunidos - riso e choro, inclusive.
Comemore. O brinde à vida não pode esperar".
  

- Cris Guerra em "Procurava o amor em jardins de cactos" (p. 142- 145).


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