sábado, 21 de maio de 2016

Você vive em mim, eu vivo em você

INSPIRAÇÃO - BELAS HISTÓRIAS

Você vive em mim, eu vivo em você
A jornalista Renata Piza escreve um relato amoroso e corajoso sobre a morte súbita do marido Daniel Piza, aos 41 anos, e conta como demorou para descobrir a expressão "Ubuntu" - eu vivo em você, você vive em mim", o estalo e conforto que precisava para, como ela diz, "dobrar de tamanho" e seguir com ele dentro de si.

O meu ex-marido, provavelmente a pessoa mais brilhante que conheci, foi demitido algumas vezes, o que sempre me pareceu suspeito. Não entendia como alguém tão bom, tão inteligente, tão bom caráter pudesse ter sido preterido por algum chefe. Pensava, intimamente, se era a personalidade forte dele, se talvez fosse “culpa” dele. Tola eu. Ele ria. De verdade não se importava e me dizia que muita gente é demitida simplesmente porque tem chefes ruins, não porque é um profissional ruim.

Faz 4 anos, 3 meses e 9 dias (data em que escrevo esse texto) que o meu marido se transformou em ex sem que eu pudesse palpitar a respeito. Onde foi que eu assinei?! Eu nunca concordei. Coisa estranha virar ex dessa maneira, sem briga, sem discussão, sem juiz, sem caneta.

Até bem pouco tempo atrás eu relutava com a palavra. Ex? Será que isso ai tá certo? Não nos separamos, não nos divorciamos e mesmo quando comecei a namorar outra pessoa, me sentia meio Dona Flor, meio traíra. Mas meu analista foi decisivo: “a morte é a maior das separações, Renata. Lembra do até que a morte os separe?”.

Daniel, meu ex, como meu analista quis me convencer a enxergar, não era só o meu marido. Era o pai dos meus filhos. Meu amigo. Um pouco meu pai também, já que meu pai morreu quando eu tinha 19 anos. Meu conselheiro, coaching de vida, coaching profissional – embora detestasse essas nomenclaturas. Era o cara mais gente boa da Terra. Bom de verdade, sabe? Em tudo o que fazia era bom, porque essa era uma condição tão impregnada em seu coração, que era impossível ser diferente.

Mas ele não era “apenas” bom. Era íntegro, inteiro, gostassem ou não gostassem dele. Não era o tipo de gente que faz concessões pra agradar aqui ou acolá. Era conhecido por alguns como Dani le rouge, por conta de seus cabelos, mas muito mais por conta da sua postura. Muitos o chamavam de Piza, também. Eu? Chéri, porque nunca vi alguém ser de verdade tão querido na vida. Tão parceiro.

Quando ele morreu, subitamente em 30 de dezembro de 2011, passei algum tempo fora de mim, como se estivesse morta também – só que presa aqui. Como se minha alma tivesse partido e não avisado meu corpo. Queria acordar desse roteiro grotesco que eu não tinha escrito – e tinha certeza de que ele também não. Lembro de chorar muito, comer o mínimo, cortar o cabelo, cortar a pele, brigar com Deus. Um Deus, confesso, de quem não era nem tão íntima, que fui conhecendo depois, tudo a seu tempo, imagino.

Lembro de flashes. O barulho dele caindo no chão do banheiro. A luz se apagando da sua retina. A respiração silenciada. O cobertor de zebra, que enrolei nele para tentar esquentá-lo. Estava tão frio. Estávamos na serra, mas obviamente, o frio era de outra natureza. Lembro das horas infinitas até a funerária chegar. Lembro de ir ver o caixão e de achar o terno que colocaram nele tão feio, tão injusto… A gente se apega a pequenos detalhes.

Lembro da Bia, amiga-irmã, que no meio desse horror à la Conrad, conseguiu se sustentar sobre as pernas e acalmar as crianças. Lembro da Micky, que deixou os filhos e o marido, e passou o 31 de dezembro comigo no cemitério, tão generosa, tão humana. Lembro da minha mãe e do marido dela. Do Renato, irmão do Dani, que também não saiu de lá. Éramos 5 pessoas entre uma dimensão e outra qualquer, esperando o dia raiar e os outros chegarem para fazermos o enterro, esses rituais todos que parecem expandir o sofrimento.

Lembro de olhar para a mão do Daniel e perceber que ela estava na mesma posição que ele costumava deixá-la em vida. Quase surreal. Lembro do Fred, de joelhos na grama, na hora do enterro, numa visão tão doída, que parecia a minha refletida no espelho. Lembro de voltar pra casa, com duas crianças, sem emprego (estávamos de mudança de país e tinha pedido demissão) e sem a menor ideia de como levantaria da cama no dia seguinte. De como diria para o meu pulmão “ei, amigo, continue respirando”.

Mas existe um mecanicismo na vida, Newton estava certo. Por mais que você não queira, o ar entra e sai; o sangue circula, o coração continua batendo; as pálpebras abrem; os pássaros, desaforados, insistem em cantar. Um amigo aparece, uma chefe boa te oferece o emprego de volta (gratidão, Lenita e Dulce), o rosto dos seus filhos te lembram que eles precisam de você, mesmo que você não saiba como ajudá-los, como dizer que tudo vai ficar bem.

Por muito tempo não fica, menti um pouco pra eles, mas não vou mentir pra você. Por muito tempo, talvez pra sempre, você sinta que violentaram a sua alma, que tiraram uma parte sua. Nas minhas divagações, aliás, pensava em barganhar com Deus. Leva uma perna, um braço, deixa o Daniel. Tola eu.

Aceitar a morte é provavelmente a única garantia que temos da vida, e justamente a mais difícil. É dizer o óbvio: não controlamos nada, não existe sempre justiça ou, pelo menos, não conseguimos ver a figura completa. Por que alguém saudável, com três filhos, uma mulher apaixonada, um emprego incrível, tantos amigos, tantos leitores, tanta, tanta vida tem que morrer aos 41 anos?

Não tem. Não morreu, não está embaixo da terra. A energia, a força, a compaixão e quem sabe um pouco da inteligência e do coração de leão do Daniel estão comigo, estão com nosso filhos, estão em seus livros – leia, são bons, eu garanto. Um sopro de lucidez nesses tempos tão incertos.

Demorou um pouco, alguns anos, para eu descobrir o que significava a expressão Ubuntu – eu vivo em você e você vive em mim. Foi o Lourenço que me contou, um desses amigos que surgem de repente e que, embora nem sejam tão próximos assim, são tipo anjos, espalhando a palavra certa na hora certa. Ubuntu foi um estalo e o conforto de que tanto precisava.

Depois disso, como diria o escritor Valter Hugo Mãe, eu dobrei de tamanho, porque de alguma maneira, ainda que nunca mais inteira, carrego o Dani comigo, sua força, guerreiro do Norte, sua altivez, seu olhar doce, igualzinho ao do Bernardo.

E agora, se perco o emprego ou algo que parecia valioso sai de cena, posso praticamente ver ele sorrindo dentro de mim e me lembrando que às vezes é só um chefe ruim, um amigo desleal ou uma injustiça qualquer, um bug do sistema. Mas que a melhor resposta é levantar da cama e sacudir a poeira. Como ele dizia: “viver bem é a melhor vingança“. Sempre.



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