"Um dos meus trechos favoritos da literatura é de As cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Nele, Calvino descreve uma cidade imaginária chamada Eufemia em que os mercadores de todos os países se reúnem em cada solstício e equinócio para trocar mercadorias. Mas esses mercadores não se reúnem apenas para trocar especiarias, pedras preciosas, gado e tecido. Na verdade, eles vão a essa cidade para trocar histórias - para literalmente trocar intimidades pessoais. Segundo Calvino, funciona assim: os homens se reúnem à noite em torno das fogueiras no deserto, e cada um oferece uma palavra, como 'irmã', 'lobo' ou 'tesouro enterrado'. Então, todos os outros homens, um de cada vez, conta a sua história pessoal de irmãs, lobos e tesouros enterrados. E nos meses seguintes, muito depois de partirem de Eufemia, quando cruzam o deserto sozinhos em seus camelos ou singram o longo caminho até a China, os mercadores combatem o tédio desencavando antigas lembranças. E é aí que os homens descobrem que as suas lembranças foram mesmo trocadas [...]
Com o tempo, é isso que a intimidade faz conosco. É isso que um casamento longo pode fazer: ele nos leva a herdar e trocar as histórias um do outro. Em parte, é assim que nos tornamos anexos um do outro, treliças nas quais a biografia do outro pode crescer. A história privada de Felipe se torna um pedaço da minha memória; a minha vida se entrelaça com a matéria-prima da vida dele. [...]
Lembro-me de uma noite quente e úmida em que acordei [...] Mais uma vez, escolhi uma palavra ao acaso.
- Conte uma história sobre peixes - pedi.
Felipe pensou por um bom tempo.
Depois, demorou-se no quarto enluarado contando uma lembrança das pescarias com o pai em viagens noturnas quando era apenas um menininho no Brasil. [...] Imitou as braçadas do pai, deitado ali de costas no ar úmido da noite [...] Depois de todas aquelas décadas perdidas, Felipe ainda conseguia imitar o som exato que os braços do pai faziam ao cortar as águas rápidas e escuras: 'Xaxaaa, xaxaaa, xaxaaa ..."
E agora aquela lembrança, aquele som, também nadam em mim. É quase como se eu conseguisse me lembrar, apesar de não ter conhecido o pai de Felipe, que morreu anos atrás. [...]
Isso é intimidade: a troca de histórias no escuro.
Para mim, esse ato, o ato da conversa noturna tranquila, ilustra mais do que tudo a estranha alquimia do companheirismo. Afinal, quando Felipe descreveu as braçadas do pai, peguei aquela imagem aquosa e a costurei delicadamente na bainha da minha vida, e agora vou levá-la comigo para sempre. Enquanto viver, e mesmo muito depois que Felipe se for, a sua lembrança da infância, o pai, o rio, o Brasil, tudo isso também, de certo modo, passou a ser meu".
- Elizabeth Gilbert in "Comprometida" (p. 315-318)
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